A “lista de novos comunistas” é atualizada quase que diariamente nas redes sociais brasileiras: Rede Globo, Leonardo DiCaprio, Supremo Tribunal Federal, MBL, The Economist, Bill Gates…
Você já deve ter se deparado com um meme parecido com o descrito acima inúmeras vezes nos últimos anos — e nem é preciso insistir que nenhuma das pessoas ou instituições citadas é realmente comunista.
A brincadeira, no entanto, ilustra a polarização que domina a política brasileira nos últimos anos e como o vocábulo comunista virou uma espécie de xingamento usado por alguns adeptos da direita no Brasil — mesmo quando o alvo está no lado oposto do comunismo no espectro político, como a liberal revista britânica The Economist, por exemplo.
Mas para além dos memes e ataques contra adversários, o que realmente significa ser comunista? Quais as origens da ideologia política que inspirou ideais, revoluções e massacres ao redor do mundo?
Para entender tudo isso, a BBC News Brasil traça um panorama das origens das ideias comunistas, passando pelas diversas vertentes em que a ideologia se dividiu e explicando como a ideologia impactou a política brasileira.
As origens do comunismo
Não há muito consenso porque existem várias vertentes do socialismo e do comunismo, como o cristão (marcado pelo espírito comunitário do surgimento do cristianismo) e o marxista (considerado o mais popular e influente).
As origens do comunismo também não estão muito claras. Há quem aponte o surgimento desses ideais na Grécia Antiga, mais especificamente na obra A República, do filósofo grego Platão, que nasceu quatro séculos antes de Cristo.
Em sua obra, Platão já discutia ideias como o fim da propriedade privada e da família (caberia ao Estado educar as crianças) para evitar conflitos entre interesses públicos e interesses privados. Mas esse modelo, para o filósofo grego, só deveria ser aplicado às classes sociais mais poderosas — o restante da população (mais pobre e menos poderosa) seguiria o modelo tradicional, que abasteceria aqueles acima na hierarquia social.
O filósofo e professor italiano Giuseppe Bedeschi (Universidade de Roma La Sapienza) conta no Dicionário Político, organizado por Norberto Bobbio, que os primeiros ideais comunistas voltados a todos os homens, e não mais apenas algumas classes, floresceram no âmbito da civilização cristã. “O ideal de vida em comum, vivida na pobreza e na caridade, e do consequente desapego dos bens terrenos, operará potentemente no cristianismo dos primeiros séculos.” Seria uma espécie de comunismo cristão.
Segundo Bedeschi, a conexão entre espiritualidade cristã e as reivindicações sociais de viés comunista atravessariam os séculos. No século 8º, por exemplo, o monge e teólogo católico Joaquim de Fiore pregou os ideais de pobreza, castidade, fraternidade, comunhão universal e o fim das “lutas para o meu e para o teu”.
Na Idade Moderna (séculos 15 a 18), os ideais comunistas começam a ganhar contornos utópicos. “Parece-me que em todo lugar em que vigora a propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de todas as coisas, seja bem difícil que se consiga concretizar um regime político baseado na justiça e na prosperidade”, escreve na obra Utopia o jurista e filósofo inglês Thomas More, venerado como santo na Igreja Católica.
A obra foi escrita em meio à expulsão dos camponeses de suas propriedades porque o sistema econômico inglês à época precisava de espaço para criar ovelhas a fim de abastecer as manufaturas têxteis nas cidades. Os ex-camponeses se transformariam na mão de obra assalariada que trabalharia nessas manufaturas urbanas em condições insalubres.
No século 17, começa a surgir o chamado comunismo utópico, que considerava mudanças sociais em voga, como soberania popular por meio de sufrágio universal masculino e tolerância religiosa, insuficientes para corrigir desigualdades sociais. Adeptos dessas ideias propunham a abolição de propriedades privadas e fundiárias. “A terra, dada por Deus a todos os homens em comum, deve ser cultivada em comum, de modo que cada um possa conseguir produtos dela de acordo com suas necessidades”, explica Bedeschi.
No século 18, o movimento babuvista (liderado pelo jornalista e revolucionário francês François-Noël Babeuf) defendia pouco antes da Revolução Francesa ideais como o fim da propriedade privada, a democracia direta em que o povo decida sobre leis elaboradas por políticos e a ditadura da insurreição. Ou seja, “os revolucionários não devem hesitar em adotar medidas políticas extremas para garantir o sucesso da própria obra”.
Já no começo do século 19, outro pensador francês teria importância crucial para o avanço das ideias comunistas e também utópicas: Charles Fourier, conhecido atualmente também por ter cunhado o termo feminista.
Considerado um dos fundadores do chamado socialismo utópico, Fourier defendia uma transição pacífica em direção a um modelo social, político e econômico formado por pequenas comunidades (falanstérios) em que as pessoas vivem e trabalham juntas em torno da própria subsistência.
A divisão do trabalho, sem conflitos, seria alternada de tempos em tempos entre os indivíduos (algo parecido com a fase inicial dos kibbutzim em Israel no século 20).
As ideias de Fourier serviriam de base para a fase seguinte que surgiria décadas depois: o chamado socialismo científico, capitaneado pelos pensadores alemães Karl Marx e Friedrich Engels.
Em sua obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels cita a descrição que Fourier faz do “círculo vicioso” da sociedade moderna, “num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las, conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer conseguir”.
Engels, no entanto, afirma que Fourier não podia em sua época vislumbrar que o círculo vicioso não seria eterno, mas rumaria em direção à tragédia social em que os trabalhadores seriam substituídos pelas máquinas do capital dominante. E por isso, para Engels, a classe trabalhadora precisava reagir e substituir esse sistema econômico capitalista.
O marxismo
Mas, apesar das origens mais antigas, muito do que se entende por comunismo hoje deriva das ideias e das obras de Engels e, principalmente, de Marx.
Em geral, especialistas afirmam que o chamado comunismo marxista prega uma luta de classes entre a burguesia e o proletariado que leva à revolução. O socialismo seria uma espécie de estágio intermediário nesse processo, com o capitalismo em vigor e a classe trabalhadora se conscientizando e se empoderando.
Quando a revolução acontece de fato, na teoria, a sociedade deixa de ter classes e propriedades privadas. Além disso, os meios de produção passam a pertencer a todas as pessoas.
Marx enxergava a sociedade como uma construção em torno das “forças materiais de produção” (o trabalho e os meios de produção) e das “relações de produção” (os arranjos sociais e políticos que os regulam).
Para ele, o comunismo iria surgir de forma inevitável em países com economias avançadas, embora muitas releituras de sua obra tenham tentado transpor sua filosofia para países agrários pobres (como a China da primeira metade do século 20 e a própria Rússia dos tempos dos czares).
Talvez a parte mais importante do pensamento marxista esteja na obra O Capital, cujo primeiro volume saiu em 1867. O livro é essencialmente uma descrição de como o sistema capitalista funciona e como, afirma Marx, ele se destruirá ao longo de seu desenvolvimento.
O pensador alemão já havia exposto suas ideias no Manifesto Comunista e em outras obras acerca da luta de classes, e de como os trabalhadores do mundo iriam tomar o poder das elites dominantes. O Capital é uma tentativa de dar a essas ideias uma base em fatos verificáveis e análises científicas.
Não é uma leitura fácil. O produto de 30 anos de trabalho e do estudo de Marx sobre a condição dos trabalhadores nas fábricas inglesas no auge da revolução industrial é parte história, parte economia e parte sociologia. De forma simplificada, Marx argumenta em sua obra que um sistema econômico baseado no lucro privado é inerentemente instável.
Os trabalhadores são explorados pelos donos das fábricas e não possuem os produtos de seu trabalho, o que os torna pouco melhores do que máquinas. Por outro lado, os donos de fábricas e outros capitalistas detêm todo o poder porque controlam os meios de produção, podendo acumular vastas fortunas enquanto os trabalhadores mergulham cada vez mais na pobreza.
Como disse Engels sobre as ideias de Fourier, Marx acreditava que essa é uma forma insustentável de organizar a sociedade e ela acabará entrando em colapso sob o peso de suas próprias contradições.
O socialismo na visão de Marx, explica à BBC Lea Ypi, professora de teoria política da London School of Economics, era um estágio que antecedia o comunismo.
“Socialismo é uma forma de capitalismo em que uma parte específica da população, a classe trabalhadora, foi empoderada contra as classes capitalistas. Por outro lado, a sociedade comunista é a utopia na visão de Marx. É o fim da sociedade de classes, é o fim da política enquanto conflito.”
O teórico alemão não tinha certeza de quando isso iria acontecer, apenas de que isso seria inevitável. Ele também não explica claramente que forma deve ter a sociedade comunista que substituirá o capitalismo, apenas diz que ela libertará os trabalhadores de sua servidão. Suas teorias ficaram inconclusas com sua morte em 1883.
De toda forma, os pensamentos de Marx e Engels, que não chegaram a colocar em prática suas ideias, serviram de base e inspiração para ações concretas: as mais diversas tentativas ao longo do século 20 de colocar o comunismo em prática ao redor do mundo.
Mas antes de falar sobre as tentativas de colocar as teorias marxistas em prática, é importante explicar que, com o tempo, os termos socialismo e comunismo passaram a ser usados muitas vezes como sinônimos.
Com a criação da União Soviética, no entanto, o termo socialismo passou a ser associado muitas vezes com experiências políticas fora da esfera de influência russa (inclusive sociais-democratas) e o termo comunismo ficou mais ligado aos partido ligados a Moscou. E é sobre esta experiência que entenderemos melhor a seguir.
O socialismo real
A mais importante tentativa de tornar o socialismo realidade começou em 1917 na Rússia, na chamada Revolução Comunista. O movimento revolucionário russo foi liderado por nomes como Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Joseph Stálin.
A primeira fase do movimento deu fim a séculos de domínio da monarquia czarista. Oito meses depois, a segunda fase foi marcada pela substituição do modelo capitalista pelo socialista, algo que nunca havia sido tentado ao redor do mundo.
Lênin, o primeiro líder comunista, adotou o slogan “paz, pão e terra” para a população, que enfrentava fome e guerra, entre outras crises.
Ele era um pensador radical que acreditava que uma revolução comunista ajudaria a trazer igualdade para a recém fundada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Muitos russos se lembram dele como um grande líder que libertou o povo, mas para outros seu governo era controlador e cruel, pois aprisionava e matava pessoas que discordavam de suas ideias ou ações.
Essas duas visões opostas também seriam marcantes durante o governo de Stálin, principal sucessor de Lênin. Ele daria nome também ao chamado stalinismo, considerado uma forma mais linha-dura, inflexível, autoritária, hierárquica, intolerante à dissidência e não democrática do comunismo marxista-leninista, segundo o Dicionário de Política Routledge.
A morte de Lênin em 1924 abriu uma disputa pelo poder entre Stálin e Trotsky, líder do Exército Vermelho tido por alguns como um sucessor natural no cargo de líder soviético. Mas a maioria do Partido Comunista considerava Trotsky idealista demais para assumir o comando.
Stálin, por outro lado, desenvolveu uma leitura própria do marxismo que concentrava os poderes e tornaria a União Soviética uma espécie de império.
No fim dos anos 1920, Stálin se torna ditador da União Soviética. Ao longo do governo stalinista, a União Soviética passa por transformações profundas e conturbadas, como um rápido processo de industrialização e um amplo programa de desapropriação e coletivização de propriedades rurais (que acabou também levando à fome e a milhões de mortes).
Em meio a essas mudanças, Stálin promove o que ficou conhecido como o Grande Terror: a perseguição, o expurgo e o assassinato de todos aqueles que eram considerados inimigos da revolução.
A paranoia e o denuncismo tomam conta da sociedade. Entre 1934 e 1939, estima-se que cerca de 750 mil pessoas tenham sido mortas sumariamente, sem direito a julgamento justo.
Mas Stálin, por outro lado, é exaltado pelo papel fundamental da União Soviética na vitória contra o regime nazista de Adolf Hitler e seus aliados. E até hoje Stálin é considerado um grande líder na Rússia.
Um levantamento feito em 2019 pelo instituto de pesquisa Levada Center apontou que 51% dos adultos do país respeitavam, gostavam ou admiravam Stálin, com um aumento entre os mais jovens em relação a pesquisas anteriores.
Para Ekaterina Schulmann, cientista política russa e professora da Moscow School of Social and Economic Sciences, há diversos fatores importantes por trás desse índice positivo, como uma nostalgia romantizada das condições de vida no período soviético, a atual propaganda estatal que retrata Stálin como líder astuto e vitorioso na guerra e um sentimento contemporâneo antielite.
“A memória de Stálin não é do homem real, mas do que permaneceu no imaginário popular, como um símbolo de disciplina à mão de ferro e um último bastião na batalha contra burocratas gananciosos”, disse a pesquisadora à BBC Rússia.
O modelo comunista da União Soviética seria, até 1990, o principal contraponto ao modelo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos.
Mas além da Revolução Russa, outros movimentos comunistas importantes ocorreram pelo mundo, como a Revolução Chinesa, vitoriosa em 1949, liderada por Mao Tsé-tung.
Ele implementou políticas marxistas, mas, diferentemente do comunismo soviético, centrado na classe trabalhadora industrial, a revolução maoísta se baseou nos camponeses. A coletivização e a centralização da economia transformaram a sociedade chinesa.
Em quatro décadas, a China conseguiu tirar 850 milhões de pessoas da pobreza. Mas a desigualdade se acentuou no país. E hoje, 70 anos depois, alguns especialistas classificam a China como um capitalismo de Estado, num modelo em que a “mão invisível” do Partido Comunista da China está em todos os aspectos da economia.
É o Estado que controla quase todas as maiores empresas do país, que administram os recursos naturais. Ele também é oficialmente o proprietário de toda a terra, embora, na prática, as pessoas possam ter propriedades privadas. E o Estado também controla o sistema bancário, decidindo em linhas gerais quem pode tomar empréstimos, por exemplo.
Outra revolução que abalou o mundo e influenciou diversos países — principalmente na América Latina, foi a Revolução Cubana, quando, em 1959, um pequeno grupo de guerrilheiros liderados por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Raúl Castro conseguiram derrubar uma ditadura e implantaram um governo socialista no país.
Cuba representa até hoje uma das mais conhecidas e controversas experiências comunistas
O regime cubano, que perdura até hoje, trouxe avanços sociais ao país principalmente nas áreas da educação e saúde, mas caracteriza-se também por uma concentração autoritária de poder em um regime de partido único, onde oposicionistas são muitas vezes perseguidos e presos.
BBC News














